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A NARRATIVA “CIENTÍFICA” EM TRICOLOGIA X AS CONCLUSÕES CIENTÍFICAS

Uma das coisas mais interessantes que aconteceu com a chegada da internet foi a horizontalização do conhecimento. Se uma pessoa sabe pesquisar, busca informações em fontes confiáveis e quer se deparar com o status atual do conhecimento científico, certamente vai conseguir. Porém, ter acesso ao conhecimento científico não significa fazer uso dele da maneira correta. E isso se torna mais evidente quando a leitura é enviesada e alguém cria uma narrativa “científica” para atender aos seus propósitos. 
Para quem não sabe, o termo “narrativa” está na moda há alguns anos. E, em especial desde as últimas eleições, vem sendo utilizado de uma forma intensa para descrever os mesmos acontecimentos sociais e políticos com vieses liberal ou conservador, só para dar um exemplo. Um político ou partido de esquerda descreve um fato sob sua ótica enquanto o de direita descreve o mesmo fato sob uma ótica completamente diferente, justificando com argumentos próprios a veracidade não do fato, mas da versão que escolheram para o fato. O mundo criado por Goerge Orwell em seu famoso livro 1984 (publicado em 1949) já mostrava os interesses das narrativas geopolíticas. A ascensão do Nazismo foi baseada em narrativas, como a da existência de uma “raça pura” de humanos, a raça ariana, só para citar outro exemplo. 
O pensamento reflexivo é algo que sempre fez a ciência crescer. Tentar estabelecer relações entre mecanismos de formações de doenças para explicar ou entender problemas diferentes é algo válido e permitido. Mas, para isso se virar uma conclusão, as hipóteses precisam ser justificadas da forma correta, estudadas da forma adequada e com metodologias científicas que possam ajudar na comprovação da hipótese. Sim, o que se busca comprovar quando se tenta aplicar um mecanismo etiopatogênico para explicar uma doença ou um problema de saúde é uma hipótese. Uma hipótese validada se torna verdade científica (até que o conhecimento evolua e essa verdade seja suplantada por outra, algo que pode acontecer porque a ciência evolui sempre).
E quando alguém constrói uma argumentação para justificar uma hipótese, fazendo da argumentação uma conclusão assertiva, estamos falando de uma narrativa. Porque uma hipótese, não comprovada, é apenas uma possibilidade da verdade, mas não a verdade em si.
Vou dar um exemplo aqui que foi comprovado cientificamente e que é amplamente utilizado para o tratamento da queda capilar, que é o da inibição da enzima 5-alfa-redutase. Quando os pesquisadores perceberam que a ação dessa enzima, já bem estudada nos tumores benignos de próstata, tinha participação no surgimento da alopecia androgenética, estudos foram feitos para confirmar se certos medicamentos utilizados para para o tratamento da próstata com atividade de inibição dessa enzima tinham capacidade de tratar a calvície. Daí surgiu uma das mais importantes medicações utilizada nos dias atuais para esse problema. Que fique claro aqui que uma medicação para a próstata só pode ser lançada no mercado para o tratamento da calvície porque o seu mecanismo de ação e efeito no tratamento da perda capilar foi cientificamente comprovado com uma sequência de estudos antes de chegar ao mercado. 
É interessante perceber que, só na unidade pilossebácea, essa enzima, a 5-alfa-redutase, atua com efeitos diversos como: aumento da gordura produzida pelas glândulas sebáceas desencadeando seborreia, dermatite seborreica e acne, aumento da produção de pelos no rosto e no corpo dos homens, aumento dos pelos no rosto e corpo de mulheres (quando em excesso esse quadro é chamado de hirsutismo) e, também, a calvície. Percebam que interessante o efeito paradoxal dessa enzima que, atuando nos hormônios esteróides no interior das células da unidade pilossebácea, pode provocar ao mesmo tempo calvície no couro cabeludo e hirsutismo em uma mulher, algo relativamente frequente naquelas que tem síndrome dos ovários policísticos. 
Algo que é claro e taxativo é que, apesar de atuar nos esteróides presentes nas células da unidade pilossebácea, a atividade da enzima 5-alfa redutase, quando gera um problema como os citados acima, promove respostas diferentes de acordo com a região onde essa unidade pilossebácea está localizada e de acordo com a sensibilidade que suas células tenha aos esteróides. Para citar um exemplo, é comum aumento da oleosidade induzido pelos esteróides no couro cabeludo e na pele do rosto de um homem, e esse excesso de oleosidade pode agravar, pelas vias inflamatórias, uma calvície no couro cabeludo mas não interferir no crescimento dos pelos da barba. 
Ao longo dos anos muitos produtos e técnicas surgiram no mercado para tratar a calvície baseados em fundamentos hipotéticos. As hipóteses serviam bem ao marketing desses produtos pois a narrativa criada para justificar seus usos parecia agradar ao consumidor. Em especial porque esse consumidor tinha menos acesso ao conhecimento científico. Como eu já disse no primeiro parágrafo desse texto,  a internet permite conhecimento livre a todos, tanto para profissionais quanto para leigos, e qualquer pessoa que souber interpretar bem um artigo pode saber se está diante de uma verdade ou de uma narrativa. 
Quando percebo que alguns profissionais insistem em fortalecer uma hipótese sobre um problema de saúde, através de uma narrativa, usando para isso referências bibliográficas de uma outra doença, fico pensando seriamente o que os move. Se a falta de compreensão de que a hipótese é uma possível conclusão mas que precisa ser validada antes de ser defendida de forma assertiva, se a interpretação de texto ficou comprometida pela complexidade da leitura de textos científicos, ou se a leitura foi feita com viés de interesse pessoal. Nesse caso, vejo alguns motivos (hipóteses, é claro) que me parecem justificar o viés pessoal: 1- insistir em manter argumentos que esse profissional usa há anos e que precisa sustentar para que ele não pareça ultrapassado frente aos seus clientes/pacientes ou colegas, 2- marketing para seguir vendendo produtos e serviços, 3- lacração, porque no mundo virtual todos querem ter razão e precisam fazer isso a todo custo, mesmo que isso aconteça através de uma narrativa enviesada, 4- falta de humildade para aceitar que está errado. 
O que fica de importante nesse texto é que as hipóteses precisam ser validadas antes de serem utilizadas com argumentos para ter credibilidade, do contrário são apenas narrativas. O marketing usa das narrativas para vender produtos, procedimentos e profissionais. Quem perde com as narrativas na área da saúde são os clientes/pacientes, o profissional que as usa e o mercado como um todo. E perceber que isso é uma coisa frequente na área de cabelos é algo que enfraquece a tricologia e a terapia capilar. 
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