Siga-nos nas redes sociais!

Hiroshige, o mestre da arte japonesa – E também um pouco de medicina

Gosto do trabalho de Hiroshige. Abro sempre o livro One hundred famous views of Edo desse importante artista japonês. Me transmite paz e tranquilidade.

Com trabalhos repletos de cor, muitos deles mostrando céus com tonalidade rósea, Ando Hiroshige consegue transmitir um retrato de seu tempo com cenas do cotidiano e lindas paisagens do Japão do século XIX.

Apesar de seu colorido tradicional, há um dos trabalhos de Hiroshige que me impressiona, o que recebeu o título de Chuvasca repentina na ponte Shin-Ohashi e Atake, e que pode ser encontrada no livro supra citado.
Ao primeiro olhar me chamou muito a atenção a forma como o artista desenvolve a ideia da chuva em seu trabalho. Linhas longas que cruzam toda a extensão da gravura horizontalmente ou seguindo um padrão discretamente diagonal dão peso força aos pingos de chuva que parecem atingir fortemente a paisagem.
Nessa obra, em especial, Hiroshige tinge o céu, extremamente enevoado, num tom que vai do cinza ao negro, passando a impressão de uma tempestade intensa, tal como temos nossas tormentas de verão. Rápidas, intensas e capazes de mudar de forma e brusca a cor do céu de um belo azulado para um anoitecer fora de hora.
Este céu, enegrecido, cria uma certa aura de tensão na paisagem como apenas mudanças bruscas e intensas do clima são capazes de trazer. Sentimentos que envolvem o imprevisível, o incontrolável, o desconhecido brotam na imagem.
Os caminhantes sobre a ponte surgem incomodados com a súbita mudança no estado climático. Alguns com seus guarda-chuvas abertos. Outros, como que pegos de surpresa, ainda não os abriram por completo. Parecem correr para as extremidades da ponte, fugindo do aguaceiro que chega com toda sua fúria e violência. Querem evitar o molhado do aguaceiro, além de, se possível, estar em algum lugar mais confortável e menos susceptível aos riscos que acompanham a tempestade.
A ponte, de madeira, além de ser descoberta, ao menos sob meu olhar de observador da obra, não me parece ser para os caminhantes um lugar seguro como a terra firme. E, ainda que bem construída, me passa uma certa sensação de fragilidade.

No barco ao fundo, o remar intenso do barqueiro também faz coro ao dramatismo da obra. Ele está só, e em uma situação que me parece ser ainda mais complicada do que os transeuntes que correm de um lado para outro o da ponte. Sobre um estreito amontoado de madeiras, ele se esforça lutando com suas próprias forças contra a correnteza, enfrentando a chuva pesada e tentando empurrar seu meio de transporte e a si mesmo para algum lugar que possa ser mais seguro ou melhor do que o que se encontra.

Em uma das bordas do rio, a vegetação, meio que apagada pelo temporal, surge escura, borrada, tal como uma sombra. Sem o verde tradicional que deveria ter. Quase desaparece mesclada ao cinza da paisagem escurecida criada pela tormenta. Hiroshige assim o fez para carregar ainda mais na imagem a ideia da intensidade da chuva que havia tomado Edo e seus arredores.
Essa obra de Hiroshige, ainda que possa parecer uma ilustração simples, me leva a um estado de grande reflexão. Gosto muito de olhar para ela. Ora me vejo no lugar de um dos transeuntes da ponte. Ora tento me sentir como o barqueiro. Tento me transportar para a cena em questão, e busco sentir o que esses personagens lindamente retratados pelo artista estariam sentindo.
Esse exercício, um exercício simples de se sentir no lugar do outro é tão importante quanto difícil. Importante, porque nos dá a dimensão de como estamos focados nos nossas questões pessoais a ponto de nos esquecermos de tentar encarar e entender o problema do outro da maneira como esse outro vive e o sente. Importante, porque ao fazer isso, se é que realmente somos capazes de fazê-lo com a convicção que o exercício merece, somos obrigados a fazer uma certa ablação de nosso ego e concordar que, às vezes, o problema para o qual damos tanto valor e peso, pode ser muito menor do que aquele que se encontra no outro que sofre.
Realizo esse exercício sempre pois entendo que, como agente de saúde, como curador, ao estar diante de um paciente, tenho que me abster de certos aspectos de minha realidade para viver com mais intensidade a realidade e o sofrimento do paciente que busca minhas orientações.
Como artista, Hiroshige mostra o tamanho de sua sensibilidade, genialidade e grandiosidade nessa obra. Numa paisagem, que num primeiro olhar parece simples, ele consegue trazer uma dramaticidade que poucos conseguiram. A tensão da natureza e dos personagens transbordam da tela e comovem o observador mais atento, tocando-o fundo se tiver “olhos para ver”, como diria um dos meus mestres de faculdade o médico e professor José Albertino Lage Marinho.
+ Mais posts