
“All in all it was just a brick in the wall” (No fim das contas, era apenas mais um tijolo no muro)
(Another Brick in the Wall, Part 2)
Cada paciente que atendo com queixa de queda de cabelo traz consigo muito mais do que fios nas mãos. Traz histórias, angústias, negações, traumas e medos que vão se acumulando como tijolos. Tijolos que, lentamente, constroem muros. Muros de silêncio, de vergonha, de recusa em enxergar a própria dor.
Ao revisitar o álbum The Wall, do Pink Floyd, percebo o quanto ele fala diretamente sobre os mecanismos emocionais que vejo na clínica. A obra inteira é uma narrativa de enclausuramento psíquico. Um homem (Pink) se isola do mundo construindo um muro simbólico para se proteger. Cada evento traumático da vida torna-se mais um tijolo. Para muitos dos meus pacientes, a queda capilar é esse trauma. Ou melhor: é o estopim de uma dor que já estava ali, mas que agora se revela através da imagem.
A construção do Muro: Quando o fio começa a cair
O começo quase sempre é silencioso. Uma paciente relata que o cabelo está mais fino. Outra diz que a testa parece maior. Um homem nota que a coroa está rala. Todos tentam justificar: é o estresse, é a idade, é a estação do ano. E o tempo passa. Quando finalmente percebem que a queda não é passageira, o muro já está alto.
Algumas mulheres recusam o uso de tônicos porque “melam o cabelo”. Outras dizem que estão usando, mas não estão. Não é só falta de disciplina. É medo. Medo de encarar de frente que existe um problema que exige envolvimento, tempo e mudanças reais.
“I have become comfortably numb” (Eu me tornei confortavelmente entorpecido)
(Comfortably Numb)
Essa frase resume a postura de muitos pacientes. Tornam-se apáticos. Emocionalmente entorpecidos diante do próprio sofrimento. A queda se torna rotina, e o tratamento vira um fardo. Não raro, a falta de resultados se deve não ao tratamento em si, mas ao muro de resistência que impede a adesão plena.
Alopecia Fibrosante Frontal: quando a dor se instala no rosto
Na minha dissertação de mestrado, investiguei o sofrimento de mulheres com Alopecia Fibrosante Frontal (AFF). O que encontrei foi assustador. Mulheres que já vinham lidando com separações, mortes, pressões estéticas e conflitos familiares intensos. E, subitamente, uma doença autoimune que remove a moldura do rosto.
Elas não queriam ser vistas, e justamente por isso, o corpo escolheu expor. A linha frontal recua, as sobrancelhas desaparecem, a testa se alarga. Uma dor silenciosa e crônica que vai além da perda de cabelo. É como se o mundo fosse forçado a ver aquilo que elas tentavam esconder.
“Is there anybody out there?” (Tem alguém aí fora?)
(Is There Anybody Out There?)
Sim, a pergunta de Pink ecoa em muitas dessas pacientes. Elas vão de médico em médico, de tratamento em tratamento, de suplemento em suplemento. Encontram prescrições prontas, promessas vazias, escuta rápida. E seguem perdidas.
O que elas precisam não é de um cosmético milagroso, mas de uma reconstrução simbólica. De entender que o tratamento é também uma forma de se cuidar, de se respeitar, de se permitir viver algo diferente.
Constância como instrumento de transformação
A constância é um poder silencioso. No contexto da queda capilar, isso é ainda mais verdadeiro. O tratamento exige regularidade. Os resultados não são imediatos. Mas o tempo é aliado de quem insiste.
Por isso, a disciplina não pode ser entendida como rigidez, mas como fidelidade a um cuidado. O paciente que todos os dias aplica seu tônico, lava os cabelos como indicado, ajusta seus hábitos, está dizendo ao seu corpo: “eu estou aqui por você”.
Não é sobre obedecer ao médico, mas sobre comprometer-se com o próprio bem-estar. Isso muda tudo.
O autoengano, a negação e a ilustração perfeita de Pink
Muitos pacientes mentem para si mesmos. Dizem que estão melhorando, quando não estão. Juram que seguiram as orientações, mas não seguiram. Recusam-se a usar o shampoo indicado, o medicamento, a ajustar a dieta, a fazer os exames solicitados.
E assim como Pink, tornam-se prisioneiros da própria construção. Querem o resultado, mas não estão dispostos a derrubar os tijolos que os afastam dele.
A desconstrução é também terapêutica
No álbum, a cena final é um julgamento. Pink ouve vozes internas, enfrenta seus fantasmas e finalmente escuta o veredito: “Tear down the wall!” (Derrubem o muro!)
Para muitos dos meus pacientes, o momento terapêutico é justamente esse: quando entendem que o tratamento não é só para o cabelo, mas para a vida. Quando aceitam olhar para seus padrões, rever suas negacões, tratar seus traumas, mudar seus comportamentos.
É quando deixam de ser espectadoras da própria história e passam a construir um novo enredo. Fio por fio, escolha por escolha.
O que aprendemos com The Wall?
Que todos temos tijolos. Que todos, em algum grau, construímos muros. Mas também podemos escolher desconstruí-los.
A queda capilar pode ser um sinal. Um alerta. Um convite. E o tratamento, quando conduzido com escuta, ciência e empatia, pode ser o início de uma jornada de reconexão.
É por isso que me dedico não apenas a restaurar cabelos, mas a restaurar esperança. Porque cada paciente que senta na minha frente merece mais do que um protocolo. Merece ser visto. E merece ter a chance de, um dia, olhar para o espelho e se reconhecer, sem medo, sem muro, com coragem.
Como diz a última faixa do álbum, depois que o muro cai:
“All alone or in twos, the ones who really love you, walk up and down outside the wall” (Sozinhos ou em pares, aqueles que realmente te amam, andam para lá e para cá do lado de fora do muro)
(Outside the Wall)
Que possamos caminhar juntos, lado a lado, do lado de fora do muro. Porque a reconstrução começa onde termina o isolamento.